Revista Communicare: A provocação é: vivemos, por um lado, o que parece ser um grande potencial de inovação tecnológica do ponto de vista dos aparatos, da técnica e da infraestrutura. No entanto, este suposto “progresso” não é necessariamente acompanhado pelo que diz respeito ao conteúdo circulante: uma comunicação com tendências retrógradas, cada vez mais reacionárias. Como você avalia este cenário? De fato, o potencial democratizante da rede convive / coexiste com um potencial “sombrio” do ponto de vista das ideias que circulam? 

Profa. Paola Ricaurte: Muito obrigada pela pergunta. Parece-me que há duas dimensões que poderiam ser discutidas a partir desta provocação e a partir do território de Abya Yala. Por um lado, a idéia arraigada de que o curso do desenvolvimento tecnológico atual é sinônimo de “desenvolvimento”, “modernidade” ou “progresso” em termos históricos e a partir de uma leitura hegemônica do que significam os processos civilizatórios contemporâneos.  Isto tem várias implicações, tais como, por exemplo, situar certas sociedades como “possuidoras” de conhecimento e tecnologia e outras como “usuários” ou “consumidores”. Em outras palavras, em termos geopolíticos, algumas sociedades têm a capacidade de impor certas tecnologias a outras e, com elas, certos modelos e visões de mundo, como, por exemplo, a avaliação de quais tecnologias são boas ou más. Esta superioridade é sustentada através da construção de um conjunto de narrativas sobre o poder da tecnologia. O tecnodeterminismo é um deles: um imaginário sobre a capacidade da tecnologia para definir nosso destino. Ou seja, um destino tecnologicamente forjado que nos desresponsabiliza como sujeitos e como coletividade. Portanto, para resumir, não devemos necessariamente assumir que as tecnologias que temos são boas, nem que elas são as que precisamos para nos permitir construir as sociedades e as vidas que queremos.

O outro lado desta provocação, a circulação do conteúdo, é uma questão muito complexa que não é necessariamente abordada a partir de suas causas. A comunicação é um processo de troca de informações associado ao lugar enunciativo dos sujeitos que falam. Portanto, através da comunicação, as relações de poder, assimetrias, formas de dominação e violência associadas às diferenças entre um e outro também se materializam. Este tem sido sempre o caso. Entretanto, hoje em dia, vemos que estas disputas por poder também se manifestam nas lutas comunicativas que se expressam nos espaços digitais. Essas batalhas nos espaços digitais, a violência, a polarização, não são “desordens” de informação, como às vezes é sugerido. Eles são a expressão de um exercício de dominação. É a disputa para impor um senso de realidade que permite legitimar a hegemonia de um determinado grupo ou comunidade. Os grupos que exercem violência, polarizam ou atacam são os grupos que representam um sistema que legitima e endossa essa violência que se expressa em espaços digitais e físicos. Ou seja, o que vemos nos espaços sócio-digitais é um correlato daqueles sistemas de polarização e violência que foram historicamente construídos como narrativas válidas para nos imaginarmos no mundo: a construção de quem é o inimigo, a superioridade racial, a superioridade dos homens sobre as mulheres, a superioridade dos países industrializados sobre os países não industrializados, entre outros.

Revista Communicare: O movimento pela democratização da comunicação atuou muito tempo com ênfase na regulação em nome da pluralidade e da diversidade. Este ano, o Relatório Mac Bride completa 40 anos. Aquelas muitas vozes que buscávamos em 1980 tiveram vez? As redes sociais contribuíram para uma “expansão” das possibilidades de comunicar?  

Profa. Paola Ricaurte: É muito interessante recordar neste momento as recomendações feitas pelo relatório MacBride na busca de uma ordem informativa mais equilibrada. Se pensarmos nos problemas que o relatório identificou na época, como concentração da mídia e acesso desigual à informação e comunicação, observaremos que, embora seja verdade que mais pessoas têm acesso à informação e comunicação através dos espaços digitais, ainda há uma lacuna de acesso significativa e que a concentração da propriedade das plataformas e sua capacidade de construir representações do mundo é muito maior do que jamais foi na mídia tradicional. A democratização esperada da mídia ainda não chegou. No México, por exemplo, a mídia social e comunitária está travando grandes batalhas com o Estado para poder existir, pois são obrigados a pagar os mesmos impostos que a mídia comercial. É praticamente impossível para uma mídia comunitária ser sustentável.

Voltando à questão das plataformas, se pensarmos que outra das estratégias propostas pelo relatório girou em torno de evitar fontes externas de informação, então estamos, como eu disse, em pior situação do que estávamos na época. E temos que lembrar duas coisas, por um lado, que as plataformas sócio-digitais, pelo menos as que são hegemônicas em nossa região, respondem à legislação norte-americana, não são consideradas mídia. Isto é algo em que eles insistem muito e que não deve ser esquecido. Por outro lado, dentro da legislação, elas também estão liberadas de qualquer responsabilidade pelo conteúdo que é compartilhado através delas e que nos coloca em uma situação de absoluta subordinação com relação às decisões que essas plataformas tomam com relação ao fluxo de conteúdo e aos processos que ocorrem nelas. Em resumo, da minha perspectiva, a propriedade da mídia ainda está concentrada nos atores do norte global e agora tem ainda mais capacidade de influência do que antes.

Revista Communicare: Se, por um lado, podemos considerar que houve avanços no sentido das oportunidades de expressão, será que avançamos em comunicação, entendida como arena pública, como organização do comum? 

Profa. Paola Ricaurte: Penso que também há diferentes áreas a serem consideradas aqui. É verdade que através de ferramentas digitais, o grupo de pessoas com acesso a elas pôde experimentar uma expansão de seus direitos à informação. As pessoas conectadas podem implantar sua capacidade de comunicação e expressão, o que também tem levado a novos espaços de intercâmbio e organização dos bens comuns. Por exemplo, existem grupos que constroem espaços de cuidado e organização da luta social através de ferramentas digitais. Entretanto, se olharmos para o quadro geral, as lacunas ainda são muito profundas e vão além do acesso à Internet. Quase três bilhões de pessoas no mundo ainda estão desconectadas e privadas das condições que lhes permitem utilizar essas ferramentas para seu bem-estar pessoal e comunitário. E a pergunta que devemos sempre nos fazer quando falamos sobre acesso é a qualidade do acesso e o tipo de tecnologias às quais procuramos dar acesso. Temos que mudar a lógica na qual o acesso está associado ao uso de tecnologias proprietárias.

Revista Communicare: Faz sentido pensar que vivemos uma expansão das possibilidades de expressão, mas vivemos também uma espécie de “recolonização” em outras bases, a partir da ação das empresas de tecnologias, com as redes sociais, dados e algoritmos? 

Profa. Paola Ricaurte: Bem, há um grupo de pesquisadores, incluindo eu mesmo, que pensam que a colonialidade, como esta operação lógica que legitima a dominação epistêmica baseada na superioridade racial e de gênero, hoje se manifesta através de sistemas sócio-técnicos. Como mencionei antes, a capacidade de impor um modelo do mundo ainda está sob o controle dos países industrializados. As plataformas tecnológicas hegemônicas, derivadas de um modelo corporativo e neoliberal, contribuem para ampliar seu domínio econômico e epistêmico de alguns países sobre outros, de formas de existir no mundo, o que é, naturalmente, racista e patriarcal. Para alguns autores, estamos vivendo um momento de digitalização de dados que envolve a digitalização da existência para fins mercantilistas. Este extrativismo de dados serve como base para alimentar o sistema de produção de conhecimento através de algoritmos que geram modelos preditivos sobre pessoas e fenômenos sociais. Este conhecimento é capitalizado por um pequeno conjunto de atores.

Revista Communicare: Alguns pesquisadores com quem conversamos defendem a ideia de que nossa formulação do problema da comunicação está “imatura”, no sentido de que não podemos mais ficar olhando apenas para o conteúdo, mas devemos buscar pensar sobre as regras dos algoritmos, as decisões tomadas pelas empresas de tecnologia (e que nos afetam), a regulação deste mercado. Seria possível, de alguma forma, “atualizar” o Relatório Mac Bride, pensando saídas para os problemas da comunicação hoje? Quais são os principais problemas no seu ponto de vista e quais seriam as eventuais soluções (ou caminhos)? 

Profa. Paola Ricaurte: Bem, o que eu estava apenas dizendo é que a produção de um modelo do mundo transcende o nível do conteúdo. É por isso que prefiro falar de sistemas sócio-técnicos, pois isso implica compreender o papel da tecnologia como um produto social que reflete as condições de sua produção e que responde a um sistema econômico, com seu correspondente sistema de produção de conhecimento e seu ambiente de mídia. Não podemos ver estas dimensões isoladamente, pois estamos deixando de fora a base do que mencionei no início: um problema que tem a ver com as relações de poder que entram em jogo no nível social e que são realizadas através das relações comunicativas, tecnológicas, econômicas e políticas.

Seria interessante se pudéssemos atualizar o relatório MacBride para nosso atual contexto comunicativo e tecnológico. Penso que os problemas que deram origem ao relatório ainda são válidos. Existem, por exemplo, iniciativas como o Movimento dos Não-Alinhados Digitales que procuram retomar essas idéias que surgiram há muitas décadas como resultado de uma reflexão crítica sobre o desequilíbrio de forças no mundo e que deveríamos transformar urgentemente. Como o problema não é simples, as soluções são múltiplas e envolvem todos os atores sociais. Desde os aspectos mais macro em termos geopolíticos, até os mais micro envolvendo práticas pessoais e coletivas.