Por Helena Martins*

Neste ensaio, aponto a necessidade de uma compreensão crítica da tecnologia, tendo em vista a análise de sua forma de inserção social, para, indo além do estranhamento diante dos “sintomas mórbidos” do tempo, opormos uma agenda de transformações

O longo século XX abrigou, apesar de todas as contradições que explodiram em guerras, ditaduras, neocolonialismos e também revoluções contra a dominação e a exploração, uma visão bastante linear e otimista da história. Tributária do positivismo ainda hoje reinante, a ideia de que a história caminha necessariamente rumo ao progresso esteve impregnada nas mais diversas formulações, seja sobre o olhar da ciência ou mesmo no debate estratégico dos partidos comunistas acerca dos caminhos para a superação das contradições do capital.

Esse tipo de pensamento dava continuidade ao ideal da modernidade, com seu projeto cultural fundamentado no princípio do progresso geral da humanidade. Mas se, inicialmente, os ideias da igualdade, liberdade e justiça figuravam como partes integrantes daquele projeto, foram substituídos por uma razão instrumental, asséptica, reificada e reificante, na segunda modernidade, inaugurada com a instauração do modo de produção capitalista propriamente dito (ALVES, 2011)[1]. Mesmo os críticos pós-modernos não lograram desmontar o deslumbramento com a técnica, opondo como alternativa o elogio ao individualismo e ao fragmento.

A tecnologia, apesar de estar na base de transformações que levaram, cada vez mais, à incorporação de distintos aspectos da vida social à dinâmica do capital, foi pensada cada vez menos em seus fundamentos econômico-sociais ou, como propunha Raymond Williams (2016)[2], tendo em vista as relações sociais em cujo âmbito se organizam, a forma cultural que assume. Ela passou de objeto a sujeito dos processos, esvaziando o sentido dialógico e profundamente histórico, inclusive, da comunicação, cada vez mais asselhada à própria tecnologia.

O desenvolvimento tecnológico ao longo do século XX foi, assim, marcado por e, simultanemente, promotor de ideias associados à combinação entre modernidade e progresso. A tecnologia seria necessariamente boa, viabilizaria a superação de contradições, tornaria as relações mais horizontais, participativas e harmoniosas. Esse tipo de pensamento, encontrado em trabalhos de autores que por bastante tempo figuraram como hegemônicos como Castells e Levy, guardadas as devidas diferenças quanto ao aprofundamento de suas teses, dominou os anos 1990 e os 2000, reduzindo as reflexões críticas sobre poder, desigualdade e mesmo sobre cultura.

Se as décadas anteriores presenciaram, especialmente na América Latina, que vivia e resistia a ditaduras, uma intensa discussão sobre os grandes meios e seus impactos para a organização social, o êxtase com as chamadas novas tecnologias da informação e da comunicação deixou opacas as reflexões sobre suas relações com as dinâmicas do próprio capitalismo, apesar da vinculação perceptível à dinâmica da reestruturação produtiva, à mundialização do capital, à financeirização e às transformações culturais guiadas pela agenda neoliberal. Os usos, afinal, vinham cada vez mais sendo considerados como definidores dos contornos das relações com os meios e as tecnologias. Sobrou otimismo da vontade, faltou pessimismo da razão.

Às portas do século XXI, uma bolha derivada exatamente do entusiasmo expresso em maiores investimentos em empresas de tecnologia e na ampliação do capital de risco (SNIRCEK, 2017[3]) não alterou fundamentalmente o prisma de análise. A ampla comercialização da internet, antes largamente não-comercial, dava-se de forma acelerada e permeada por promessas de oportunidades.  Todavia, marcado por interesses privados, como expõem Bolaño e Vieira (2014)[4], o avanço da comercialização transformou aquele espaço não em um reino da liberdade, mas em potente espaço para expansão do capital, em que novos produtos e serviços baseados em “multimídia” contribuíram para aplacar demanda por lucros, em um contexto de redução da produção manufatureira e de lento crescimento, especialmente nos países do capitalismo central.

Em um tempo em que as explicações baseadas na totalidade soavam demode, outras formas de ver as transformações e mesmo suas falhas se impuseram. Um desajuste momentâneo que as próprias tecnologias e as inovações viabilizadas por elas levariam a superar, argumentaram os deterministas tecnológicos. Falhas que poderiam ser corrigidas pelo próprio mercado, disseram os neoclássicos. Apesar das oscilações, a história rumaria, afinal, de forma ascendente rumo a um estágio superior e necessiamente melhor.

Ora, a crise de 2007-2008 logo contrariou essa tese. O crescimento econômico foi interrompido em escala mundial. Apesar da vigência das teses neoliberais, o Estado foi acionado para salvar bancos e empresas. Na esteira da crise, políticas de austeridade foram adotadas largamente, retirando direitos  e aprofundando desigualdades sociais. De Norte a Sul do globo, políticos conservadores, muitos facilmente caracterizados como neofascistas, chegaram ao poder por meio de eleições. Discursos reacionários, especialmente contra grupos como mulheres, LGBTQIA+ e negros e negras, passaram a circular amplamente. A laicidade do Estado tornou-se uma quimera. Como no século XVII, a negação da ciência passou do campo religioso para o político.

Nos achávamos tão modernos e, de repente, o início do século XX passou a parecer dar mais pistas sobre nós do que os jornais contemporâneos. As coincidências, infelizmente, não pararam por aí. Uma pandemia impôs-se sobre o mundo, trazendo para o cotidiano imagens de miséria e morte impressionantemente parecidas com as verificadas durante a Gripe Espanhola em 1918. As conexões globais são freadas e questionadas. O tempo, senhor dos destinos, não é mais o mesmo. Desacelerou.

As crises já em curso, especialmente a econômica, são agudizadas. Quanto à tecnologia, a ágora informacional anteriormente tão desejada agora assusta. O que deveria ser um espaço de mais democracia e participação tornou-se dominado por corporações que assumiram o papel de mediadores e até de juízas dos discursos que circulam na esfera pública. Vigilância, precarização do trabalho, modulação de comportamentos, desinformação. Tais problemáticas emergem e ganham espaço no debate público. A perversidade da forma de sua inserção social se revela.

Em meio a tal cenário, uma visão linear da história torna-se insustentável. Tal qual Walter Benjamin, é preciso destruir a visão progressista e continuista da história humana, alertando sobre as catástrofes possíveis, organizando pensamento e ação para puxar os freios de urgência, antes do incêndio. Significa opor discurso e ação ao que temos como hegemônico e que, a meu ver, passa centralmente por refletir sobre as relações entre tecnologia e cultura, recuperando a complexa rede de relações sociais, políticas, econômicas e desnaturalizando a forma que assumem hoje.

Não deixa de ser curioso considerar a atualidade da imagem que abre as Teses sobre a história de Benjamin (1940): “Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche”.

A mesma imagem aparece também na da Amazon Mechanical Turk, plataforma de oferta de trabalho precário da Amazon. O nome é referência àquela célebre fraude, em que o inventor alegava ter construído um autômato para jogar xadrez. Na verdade, tratava-se de uma elaborada ilusão, que permitia a um grande mestre esconder-se e, sem ser visto, operar a máquina. Não é difícil ver ecos dessa produção nas várias teses que pregam como caminho único e óbvio a substituição dos trabalhadores por máquinas ou que naturalizam a subsunção crescente do trabalho intelectual à dinâmica do capital. Aqui e lá, há o mesmo apagamento do processo e do sujeito.

Isso não significa adotar uma visão ludista ou avessa ao desenvolvimento tecnológico por si, de forma alguma. É necessário explorar as contradições desses avanços técnico-produtivos, identificando possibilidades e riscos. O ponto de partida é a crítica. “A história deve ser escovada a contrapelo. A história da cultura como tal é abandonada: ela deve ser integrada à história da luta de classes”, diz. Crítica que anima também a ação. Ainda com Benjamin, vale lembrar que, observando a estetização do mundo em meio à ascensão do fascismo no início dos anos 1930, o autor conclui o ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica defendendo uma aposta: “contra a estetização da política dos fascistas, a resposta do comunismo é politizar a arte”. E a tecnologia, é preciso acrescentar. Significa questionar a conformação dos monopólios digitais, o poder das corporações como árbitras da verdade, os impactos na subjetividade, o elogio ao fugaz e ao presente como totalidade, o individualismo e o consumismo etc. etc. etc.

Com os exemplos, espero ter demonstrado que não se trata de uma crítica apenas ao aparato técnico, ainda que este também deva ser visto como fruto de escolhas que não são, em geral, compartilhadas. Trata-se de questionar a tecnologia e a forma cultura, para lembrar Williams. Ora, é também com Benjamin que aprendemos que “não há nenhum documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”, como anuncia a sétima das suas Teses sobre a História. Para Lowy[5], “este princípio é a chave de uma concepção dialética da cultura. Em vez de opor a cultura (ou a civilização) e a barbárie como dois pólos opostos que se excluem mutuamente, ou como duas etapas diferentes da evolução histórica – dois leitmotivs clássicos da Aufklãrung (a filosofia das luzes) – Benjamin os apresenta como uma unidade contraditória”.

Essa unidade é contraditória também porque aquilo que pode ser chamado de “a cultura” longe está de ser única. Uma visão que reduza sua complexidade oculta a batalha permanente que há em torno da cultura. Uma batalha por hegemonia na qual há, simultaneamente, tentativas de conformação de uma contra-hegemonia, afinal  há, sempre, uma pluralidade de origens e modos de percepções, de sentidos e práticas dominantes, residuais e emergentes na vida e nas produções sociais. Olhando para o presente, vemos, por certo, a barbárie, mas, por outro lado, emergem debates e ações sobre raça e gênero como ao menos minha geração não havia presenciado.

Sem ilusões quanto ao cenário catastrófico em que nos encontramos, o convite que esboço, aqui, é para abraçarmos a aposta. “É preciso aprender que na história o inesperado acontece, e acontecerá de novo”, disse Edgard Morin em entrevista recente[6]. Em vez das certezas matemáticas e das previsões algorítmicas, é a incerteza que se apresenta em toda sua força. Com ela, o movimento, a abertura da história. Uma coisa já sabemos. O futuro resultará não do progresso linear, mas das lutas que se forjam no presente.

*Helena Martins é doutora em Comunicação Social, professora da UFC e editora da Revista Eptic


[1]ALVES, Giovanni. Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie social. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2011/09/26/terceira-modernidade-do-capital-crise-de-civilizacao-e-barbarie-social/

[2]WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo, 2016.

[3]SRNICEK, Nick. Platform capitalism. John Wiley & Sons, 2017.

[4]BOLAÑO, CRS; VIEIRA, ES. Economia política da internet e os sites de redes sociais. Eptic online: revista electronica internacional de economia política da informaçao, da comuniçao e da cultura, v. 16, n. 2, p. 71-84, 2014.

[5]LOWY, Michael. “A contrapelo”. A concepção dialética da cultura nas teses de Walter Benjamin (1940). Disponível em: http://www4.pucsp.br/neils/downloads/Vol.2526/michael-lowy.pdf

[6]https://blogdosaber.com.br/reflexao-aprendendo-a-lidar-com-o-inesperado-por-edgar-morin/