A utopia da internet, a distopia das redes e os caminhos para a regulação dos espaços digitais.

Este primeiro número de Communicare em seu novo formato (uma revista multimídia de divulgação científica) trata do tema “A comunicação e a visibilidade do arcaico”. 

Conversamos com pesquisadores(as) e agentes da zona de interseção entre a comunicação e as tecnologias para buscar compreender as ambivalências do digital. 

Vivemos, por um lado, o que parece ser um grande potencial de inovação tecnológica do ponto de vista dos aparatos, da técnica e da infraestrutura. No entanto, este suposto “progresso” não é necessariamente acompanhado pelo conteúdo circulante: uma comunicação com tendências retrógradas, cada vez mais reacionárias.  

A utopia da democratização, dos usos de um potencial que a rede traria para a comunicação (e para nossas vidas e outros campos sociais), de uma interconexão planetária deu lugar a uma distopia do que parece ser a fase mais avançada do capitalismo de vigilância. Nas redes,  circulam o excesso, o ódio e a desinformação; a captura cada vez mais sofisticada dos dados transformou os indivíduos em produtos; e a estrutura que parecia ser libertadora parece agora nos aprisionar. Em “Informar não é comunicar”, o sociólogo francês Dominique Wolton afirma: “sonhava-se com a aldeia global. Estamos na Torre de Babel”. 

Este é o debate que buscamos iluminar, contando com a participação de Pablo Ortellado (filósofo, professor da USP e colunista do jornal O Globo); Mariana Valente (Diretora do InternetLab. Doutora, mestre e advogada pela Faculdade de Direito da USP. É professora na graduação e na pós-graduação lato sensu no Insper, onde coordena a Certificação em Direito e Tecnologia); Rebeca Garcia (Gerente de Políticas Públicas do Facebook Brasil); Bia Barbosa (jornalista, especialista em direitos humanos (USP) e mestra em políticas públicas (FGV); integrante da Coalizão Direitos na Rede e uma das representantes do 3o setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil); Edgard Rebouças (jornalista e Doutor em Comunicação Social, professor associado da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e coordenador do Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transparência); Luiz Antônio Simas (escritor, professor e Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro); Helena Martins (doutora em Comunicação Social, professora da UFC e editora da Revista Eptic); e Paola Ricaurte (Professora Investigadora Associada do Departamento de Medios y Cultura Digital da Escola de Humanidades y Educação no Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey – México). 

O professor e pesquisador Pablo Ortellado conversou sobre a história da transformação da internet. “Era uma terra de promessas que se transformou numa terra de distopias (com as fakenews, o totalitarismo digital e ameaças a privacidade). Houve um giro na maneira como sociedade e os estudos enxergam a internet”. Ele conta que, na gênese da internet para uso civil, em 1996, existia a ideia de que teríamos uma pluralidade de vozes combinada com o acesso universal ao conhecimento de maneira colaborativa. Essa expectativa foi subvertida por acontecimentos posteriores, como a centralização dos operadores, a redução da diversidade de vozes e a polarização política”.

“A diversidade é incômoda aos operadores movidos pelo interesse econômico, porque é um entrave ao consumo”.  

Pablo Ortellado

A diversidade foi o principal mote do Relatório “Um Mundo, Muitas Vozes”, que ficou conhecido como Relatório Mac Bride, um documento da UNESCO publicado em 1980 para analisar problemas da comunicação no mundo e sugerir saídas para estas questões. 

Ao completar 40 anos, o documento poderia ser atualizado? Se fosse atualizado, quais seriam os problemas mapeados hoje e suas eventuais soluções? Foi sobre esse assunto que conversamos com Bia Barbosa e Edgard Rebouças

Rebouças afirma que para atualizar a discussão do relatório, precisaríamos pensar em políticas públicas para o controle social das mídias com a participação da sociedade. “Qualquer projeto de regulação não deve estar apenas na mão do Estado. É preciso que as pessoas participem. E para isso, é preciso educação para a mídia e formação de uma razão critica de quem consome as mídias”. 

Bia Barbosa conta que é preciso atualizar a ideia de democratização, “mas não abandonar a ideia de que a esfera pública contém todos os meios”. Para ela, precisamos pensar sobre o que cabe no exercício do direito à liberdade de expressão, tendo em vista uma “nova forma de exercício do capitalismo de vigilância: o capitalismo de dados”. “Trata-se da “recolonização” da comunicação por novas formas de capitalismo; da reinvenção do capitalismo em outras bases”, afirma.  

Na conferência de abertura do Congresso Nacional da Intercom em 2020, o sociólogo Muniz Sodré fez uma exposição sobre os 40 anos do Relatório Mac Bride e concluiu: “talvez o essencial não seja um mundo e muitas vozes, mas sim muitos mundos e muitas pontes”. Para ele, “a internet é uma forma radical de conexão entre sujeito, coisa e sistema. Ela é alimentada não por doutrina humanista, utópica, mas pelo big data. Esse big data está em mãos de empresas privadas com tendências monopolistas. Portanto, a real articulação não se faz com direitos humanos, nem com cooperação internacional como sonhava Mac Bride. A articulação se faz com a volatilidade voraz do capitalismo financeiro”. 

Para o professor e pesquisador Pablo Ortellado, é urgente pensar e agir para a construção de uma regulação com profundidade, robusta. “Nosso paradigma de regulação é passivo”, afirma. “Temos que sair do conteúdo e pensar em arquitetura, distribuição e escolhas dos operadores que geram problemas graves”. Ele explica o que foi o colapso de contexto, nome que está testando em sua pesquisa para investigar a escolha do Facebook de mostrar as postagens das pessoas para todas as listas de ‘amigos’ e seguidores. O colapso acontece, porque a TL de uma pessoa reúne todos os seus campos sociais de relações e todos os seus “papeis”, sendo que cada pessoa tem um comportamento diferente em cada esfera da vida. “Uma decisão de arquitetura reorganiza a maneira como as diferentes esferas da vida se integram e tem enormes efeitos para as pessoas”, afirma. 

Para o professor, nós temos uma visão de regulação que herda da utopia uma visão de que regular é restringir a liberdade. “Já se achou que a internet por sua própria estrutura era irregulável. Herdamos essa visão de mundo. E quando não se regula, quem regula são as empresas. Uma boa regulação protege a liberdade, a privacidade, a pluralidade e a integridade da esfera pública”, afirma.  

Mariana Valente avança na ideia de regulação apresentada pelo Prof. Ortellado e afirma que vivemos sob formas de mediação diferentes de controle editorial, que demandam uma discussão sobre concentração, na medida em que poucas empresas de tecnologia envolvem milhões de usuários. “Uma decisão sobre o que aparece no feed afeta 2 bilhões de pessoas. Isso é poder”. Ela sugere que a pesquisa e a ação neste campo se concentrem na regulação de comportamentos e não de conteúdos. Isso significa, por exemplo, coibir uma articulação de perfis falsos em redes montadas para manipular a opinião pública (e não necessariamente – ou apenas – a “caça” a conteúdos falsos, que pode criar precedentes para violações à liberdade de expressão). “Quando lidamos como um ecossistema, é mais adequado, porque endereça melhor o problema e envolve menos riscos a direitos”. 

A gerente de políticas públicas do Facebook no Brasil, Rebeca Garcia, conta que os desafios não são simples e que a abordagem do Facebook para a questão dos conteúdos “de baixa qualidade” acontece em quatro pilares: (1) moderação e remoção de conteúdos; 2) redução de conteúdo de baixa qualidade e de desinformação (em parceria com pesquisadores e agências de verificação, como Aos fatos, Lupa, Estadão e AFP); (3) informação, educação e diálogo (com pesquisadores e autoridades); e (4) transparência. Ela afirma que o Facebook não se opõe à regulação e que busca olhar para o comportamento e não apenas para os conteúdos. “Buscamos mapear, por exemplo o compartilhamento inautêntico coordenado e há dois anos o nosso CEO Mark Zuckerberg disse que é importante atualizar as regras da internet para conteúdos, integridade eleitoral, privacidade e dados”. No entanto, ela diz que, para regular, é preciso observar pontos importantes: (1) fazer um debate multisetorial amplo e sem pressa; (2) ter um diagnóstico, um estudo, com evidências do impacto em direitos fundamentais e na economia (especialmente nos pequeno negócios); (3) reconhecer abordagens diversas; (4) considerar corregulação e códigos de conduta; (4) ter princípios para regulação adequada que respeitem a natureza global da internet e as diversidades de atores e serviços. 

Ouvindo as conversas e acessando os conteúdos desta edição, esperamos que você possa se conectar a um panorama sobre a história da internet, as mudanças no cenário do digital com a criação e a popularização das redes sociais; e o estágio atual do desafio de buscar nos ambientes digitais uma reconstrução da ideia de comum, que está na raiz da palavra comunicação.  

Boa navegação!

CONVERSAS COMMUNICARE  

Arcaico não, ancestral sim. 

O historiador Luiz Antonio Simas afirma que é preciso diferenciar o arcaico do ancestral. “Arcaico é o antigo paralisado. Ancestral é pensamento que faz sentido no presente. Arcaico é retrógrado, o que não se abre à mudança”. Para ele, a vasão que a rede dá a pensamentos e percepções de mundo que são paralisantes não são dinâmicas ancestrais; são meramente arcaicas, porque vem acompanhada do obscurantismo daqueles que se negam a pensar a dinâmica da cultura”. Para ele, no entanto, “as redes são sintomas e encarar seus fluxos, paradoxos, dualidades e contradições é importante para o pensar”. “Se a rua é rinha, a rede é rinha”, diz. 


ENSAIOPor uma escrita da tecnologia a contrapelo  

A Profa Helena Martins aponta “a necessidade de uma compreensão crítica da tecnologia, tendo em vista a análise de sua forma de inserção social, para, indo além do estranhamento diante dos “sintomas mórbidos” do tempo, opormos uma agenda de transformações”.  [Leia o ensaio


ENTREVISTA – Paola Ricaurte (Instituto Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey – México) 

A Profa Paola Ricaurte situa os conflitos e ambivalências de conteúdos na rede no âmbito das disputas por dominação: “A comunicação é um processo de troca de informações associado ao lugar enunciativo dos sujeitos que falam. Portanto, através da comunicação, as relações de poder, assimetrias, formas de dominação e violência associadas às diferenças entre um e outro também se materializam. Este tem sido sempre o caso. Entretanto, hoje em dia, vemos que estas disputas por poder também se manifestam nas lutas comunicativas que se expressam nos espaços digitais. Essas batalhas nos espaços digitais, a violência, a polarização, não são “desordens” de informação, como às vezes é sugerido. Eles são a expressão de um exercício de dominação. É a disputa para impor um senso de realidade que permite legitimar a hegemonia de um determinado grupo ou comunidade”. 

[Leia a íntegra da entrevista


RESENHAS 

O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020. 

HUI, Yuk; traduzido por Humberto Amaral. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020. 

NOTAS 

Covid-19: Jornalistas e cientistas de dados são os mais citados por especialistas no Twitter 

Pesquisa em 81 países, incluindo o Brasil, revela como como governos e partidos vêm usando tropas cibernéticas para espalhar desinformação política e manipular a opinião pública