Causewashing é um termo utilizado para designar empresas que aparentemente são defensoras de causas sociais, mas, sob um olhar mais atento, tal postura se resume apenas a marketing. Na indústria alimentícia, esse contraste fica ainda mais evidente: através da publicidade, grandes marcas escondem os prejuízos causados por seus produtos, seja à saúde, ao meio ambiente ou à cultura alimentar da população.

O surgimento da covid-19 foi mais um agravo nesse cenário. Um relatório da Global Health Advocacy Incubator chamado “O Enfrentamento de Duas Pandemias” analisou o comportamento de várias empresas renomadas ao redor do mundo durante esse período e chegou à conclusão de que as gigantes da indústria alimentícia exploraram o novo contexto para colocarem seus produtos como parte essencial de uma suposta solução. 

Em meio à dificuldade de acesso e compra de alimentos, elas intensificaram as propagandas de ultraprocessados através da promoção de ações de solidariedade com marketing agressivo (estratégia conhecida como nutri-washing), da realização de atividades filantrópicas que não necessariamente se refletem nas discussões sobre políticas de alimentação saudável e da doação de produtos a populações mais vulneráveis, já extremamente afetadas por padrões inadequados de alimentação.

Para explorar esse tipo de posicionamento dentro da indústria alimentícia, a Revista Communicare conversou as pesquisadoras Laís Amaral, especialista em Alimento do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), e Camila Maranha, nutricionista da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Revista Communicare: Quais são as principais práticas de causewashing observadas na indústria alimentícia? 

Camila Maranha: Temos identificado cada vez mais o envolvimento das empresas – de uma maneira geral, mas também no caso das alimentícias – em causas que estão em alta no momento. Por exemplo, no dia do Orgulho LGBTQIA+, vemos várias propagandas, latinhas com as cores do arco-íris, mudança de logotipos e layout das redes sociais. 

Há também a questão racial, sobre a qual até notamos uma inicativa um pouco mais organizada do MOVER – Movimento Pela Equidade Racialque, reunindo várias empresas de áreas diferentes. Muitas, no entanto, quase não têm pessoas negras nos assentos de liderança internos ou estão associadas a problemas trabalhistas, de preconceito, injúria racial, desigualdade de gênero, enfim.

Já no cenário ambiental, vemos campanhas em prol da preservação mesmo por parte de empresas que estão associadas a problemas de deflorestamento. 

O que a gente nota é que, como a opinião pública está se mobilizando por esses temas, as empresas capturam isso. Elas entram na onda. 

Laís Amaral: São tantos washings. O causewashing é um exemplo, mas vemos também o brandwashing1, o greenwashing2. Todos muito frequentes na indústria de alimentos.

Além dos movimentos sociais, temos ainda a questão da pandemia, a qual se estende aos aspectos econômicos e de saúde no país. Nesse período, houve uma enorme dificuldade de acesso a alimentos. Como consequência, foram várias as iniciativas de doações por parte das indústrias, geralmente contendo produtos ultraprocessados, isto é, um grupo de alimentos embalados e industrializados com grandes quantidades de açúcares, sal, gorduras, aditivos químicos, amidos modificados, gordura vegetal hidrogenada, entre outros. São empresas tentando ocupar o espaço que o próprio governo deveria estar suprindo. Elas se colocam como solução do problema: doam alimentos, Equipamentos de Proteção Individual e aparatos necessários para lidar com a covid. 

E aí eu acho que tem uma questão básica: a publicidade. Isso é óbvio, não tem o que discutir. Mas quando analisamos essas indústrias mais a fundo, vemos que não é bem assim. Elas se aproveitam desse momento para fazer propaganda, para vender mais o produto. É complicado, porque eles associam a marca ao que é bem visto pela sociedade. Inconscientemente, as pessoas acabam fazendo essa relação. Às vezes, não é nem dito no comercial, mas a conexão acaba aparecendo na cabeça do público, levando-o a preferir a marca em detrimento de outras. 

Revista Communicare: Como vocês enxergam as grandes empresas da indústria alimentícia que colocam em prática ações de solidariedade e filantropia ao mesmo tempo que vão contra políticas de segurança alimentar nos países?

Camila Maranha: É uma contradição. Mais um elemento que mostra como essas iniciativas são muito mais voltadas para a construção da imagem do que para uma mudança estrutural. Há uma interferência negativa direta nas políticas, tentando, a todo momento, impedir o avanço da agenda regulatória, isto é, ações ligadas à rotulagem, publicidade e preços de alimentos. 

Além disso, é perceptível uma sofisticação de estratégias. Não só ir contra as políticas públicas, mas agir indiretamente para não ter um embate com a sociedade, especialmente quando eles veem que a pauta é aceita pela população. No caso recente da rotulagem, a recusa das empresas aos rótulos de advertência frontal até que foi um pouco direto e explícito. Mas, por exemplo, a atual gestão do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de São Paulo (Consea-SP), tem como membro o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA). 

As indústrias se infiltram para estar em um local estratégico no conselho. Elas estão dentro da política. A gente não pode nem dizer que elas são contra as políticas do Estado de São Paulo. Na verdade, elas são contra as políticas como previstas pelo Conselho Nacional. Mas estão atuando por dentro.

É uma situação de captura e até de conflito de interesses, levando em consideração que elas defendem uma outra segurança alimentar nutricional, baseada em alimentos ultraprocessados e não adequados cultural, economica e ambientalmente.

Laís Amaral: Tudo é usado para fazer publicidade, vender mais produtos e fortalecer a marca. Elas fazem isso em prol do lucro, ao mesmo tempo em que estão dentro dos espaços decisórios, influenciando todos os passos de dentro do governo para que não existam regulações aos processos e produtos que possam prejudicar suas vendas. Mais uma vez, é o comercial falando mais alto. O interesse pelo lucro vem na frente da saúde pública, do direito do consumidor e da alimentação saudável.

Além disso, temos uma publicidade massiva que fica muito evidente para as pessoas, porque em qualquer mídia, estão falando daquilo. Então, grande parte da população nem sabe da existência desses espaços de decisão. A população não participa, não porque não quer, mas porque, às vezes, não sabe que existe ou não é um espaço em que a população propriamente dita possa participar.

E é importante que a interferência da indústria nas políticas públicas também seja exposta. Não conseguiríamos fazer algo tão grande quanto as publicidades que movimentam milhões de reais, mas isso precisa ser mais equilibrado. Lutamos contra um poder econômico e político muito grande. 

Então, é tentar trazer, cada vez mais, a participação social para esses processos para que as pessoas tenham conhecimento do que está acontecendo, entendam que é um problema a indústria decidir o que é a alimentação saudável, sendo que a própria fabrica produtos não são saudáveis.

Revista Communicare: Como a população é impactada por essas contradições da indústria alimentícia?

Camila Maranha: As empresas querem que os produtos pareçam saudáveis e colocam várias alegações nutricionais nas embalagens, do desenho do corpo magro ao trigo bonitinho com frutas. E não tem nada disso ali dentro. 

Eu diria que há um elemento que passa despercebido para a população: o prejuízo à cultura alimentar local. As pessoas substituem o arroz com feijão, legumes e verduras por alimentos ultraprocessados. Esses produtos fazem com que as papilas gustativas fiquem muito viciadas no sabor intenso do sal, do doce e da gordura – muito mais do que os alimentos naturais conseguem proporcionar.

Além disso, as empresas tentam associar muito a imagem delas ao Brasil, enaltecendo o número de empregos para a economia. Mas as pessoas não refletem criticamente sobre as sedes oficiais estarem fora do país, lucrando às custas de muitos funcionários. Lucro este que vai para um número limitado de pessoas. 

Laís Amaral: Ao meu ver, o impacto direto é a fidelização à marca. Quando a gente fala de alimentação, tirando algumas exceçõe, as consequências são crônicas. As próprias doenças associadas à má alimentação são as crônicas não transmissíveis, como o excesso de peso, diabetes, doenças cardiovasculares, cânceres, etc. Nem sempre a pessoa tem o prejuízo instantâneo daquilo que ela está comendo. 

Isso é complicado, porque demoramos a fazer a associação. E a maior parte das empresas envolvidas nessa situação são aquelas que fabricam ultraprocessados. São produtos com uma composição nutricional desbalanceada, cuja relação com as doenças crônicas e o excesso de peso já é comprovada e muito clara. Temos evidências científicas demonstrando isso em diferentes estudos. 

E esse é o problema: há o consumo aumentado de um produto que não faz bem para a saúde, o qual desencadeia problemas na qualidade de vida, que, por sua vez, se refletem no custo para o sistema de saúde, e por aí vai. É um grande caos.

Sem contar o impacto ao meio ambiente, ligado ao modo de produção, como as grandes monoculturas, a utilização de agrotóxicos, as commodities, etc. São várias questões de produção, transporte, armazenamento e consumo que trazem prejuízos à natureza.

Revista Communicare: Como o campo acadêmico das pesquisas ajuda no combate a esses problemas que conversamos?

Camila Maranha: A história da militância pelo controle do tabaco, por exemplo, nos ensinou muito. O tabaco surgiu como um problema de saúde pública há muito tempo, principalmente causado pelas empresas deste produto. Por meio de ações judiciais nos Estados Unidos, vários documentos internos foram abertos, tornaram-se públicos e foram analisados. A partir desses documentos, levantaram evidências científicas que mostraram que as indústrias eram, realmente, os maiores vetores do problema. 

Elas lutaram com unhas e dentes para evitar qualquer tipo de regulação. Evitaram, inclusive, a narrativa científica de que o tabaco estava relacionado a câncer. O que eu sinto é que, no caso da alimentação, ainda estamos no momento de sensibilizar a população para mostrar os malefícios das práticas dessas empresas, tanto em relação aos produtos ultraprocessados quanto as ações para impedir que a agenda regulatória avance.

Temos ainda uma grande disputa para regular a publicidade, os preços e a rotulagem. Coisas que, no caso do tabaco, já conseguimos avançar. Nesse cenário, os estudos contribuem, além da conscientização social, para impactar os governantes e conseguir avançar na agenda regulatória a fim de conseguir políticas públicas mais saudáveis. Que seja mais fácil a população ter uma vida saudável do que uma vida não saudável.

Parece que isso é uma escolha de consumo individual, mas a questão é mais profunda. Só vamos superar esses desafios quando tivermos políticas públicas como as do tabaco. Hoje, é proibido fumar em espaços fechados, as embalagens são reguladas, a publicidade não acontece mais. Hoje em dia, a imagem do tabaco está no lugar onde deve estar: a de um produto que faz mal à saúde. Você pode consumir? Pode, mas com restrições.

No caso da alimentação, ainda temos, por exemplo, oo McDonald’s patrocinando partidas de futebol. Temos marcas associadas a governos, participando de assentos. Para o tabaco, isso não é mais permitido. A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco proíbe as empresas a participarem da mesa de negociação.

Na alimentação, temos que pensar onde poderíamos estar se aprendêssemos mais com a história do tabaco. 

Laís Amaral: Trazendo a interferência da indústria nas políticas públicas, coletamos evidências sobre o que está acontecendo. É como se fosse um monitoramento para demonstrar que isso, de fato, acontece, como acontece e quais marcas estão conectadas. É importante para expor as práticas da indústria e como ela está relacionada a questões que o consumidor nem imagina, como direitos humanos e problemas ambientais ou de saúde. 

Obviamente, a gente tem muito a melhorar em relação ao consumo alimentar e necessidade de evitar esses produtos, mas tem uma questão mais abaixo ligada às práticas, estratégias e ações das indústrias para frear as políticas públicas e interferir nos processos de decisão. A partir desses monitoramentos e coleta de informações, as pessoas sabem o que realmente está por trás.

Se pegarmos um rótulo de alimento ultraprocessado, veremos que ele é reduzido em açúcar, tem certificado com vitaminas e minerais e tem o personagem da marca falando que o seu filho vai ter ossos mais fortes por causa do cálcio. Isso é o que está chegando ao consumidor. A informação que realmente importa – a dos prejuízos – está escondida. Está, talvez, na tabela nutricional de uma maneira que ninguém entende. Ou nem isso. A pessoa realmente não tem acesso a essa informação. 

O que está ao alcance da população é a ideia de que o produto faz bem para a saúde, que a empresa promove causas sociais e ambientais. Mas as questões mais arraigadas e preocupantes, não estão. A pesquisa serve para esclarecer e deixar tudo mais visível.

Além disso, ela fortalece a luta pela proibição da publicidade infantil. Existem diferentes formas de restrição no mundo inteiro. No Chile, por exemplo, produtos que são identificados como altos em nutrientes críticos não podem ser publicizados para crianças.

É uma maneira de melhorar o ambiente alimentar em que as pessoas estão inseridas e facilitar a escolha mais saudável. Quando a gente liga a TV, não estão fazendo publicidade de frutas, legumes e verduras. O que está sendo publizado é o embalado, é o ultraprocessado. Então, as pesquisas também trazem muita robustez para lutarmos por esse tipo de restrição.

1 Brandwashing é a noção de que a simples reformulação do nome e da aparência de uma empresa pode se sobrepor aos problemas relacionados ou causados pela organização.2 Greenwashing é o uso de propagandas e outras técnicas de marketing que tratam de virtudes ambientalistas, mesmo que elas não estejam presentes na prática da marca em questão.

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Escrito por:

Michelle Prazeres

Doutora em Educação (USP) e Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) , é jornalista formada pelo Centro Universitário da Cidade, com especialização em Jornalismo Online na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Na Cásper Líbero, leciona Novas Tecnologias da Comunicação no curso de Jornalismo. É especialista em projetos educativos com uso de tecnologias digitais e em projetos de comunicação e tecnologias para a ação social e os direitos humanos.

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